terça-feira, 6 de março de 2012

A insustentável leveza de ser...

Há dois textos que me impressionam muito, porque mais do que qualquer frase de autoajuda e ou qualquer versículo dos chamados testamentos sagrados eles me desestabilizam... porque, no fundo, sabemos que isso que chamamos de Deus é informe e inapreensível e por mais que tentemos defini-lo e por mais que os guardiães do templo digam, ou melhor, gritem a plenos pulmões o que de nós espera o Deus, nunca saberemos de fato por qual razão megalomaníaca ele nos criou, nós que somos tão mesquinhos, nos que matamos o nosso irmão de morte morrida e, se não ousamos matá-lo de morte matada, é porque somos covardes, é porque temos medo de perder nosso status, é porque não o queremos como mártir porque isso nos denegriria como homens, nós que somos tão ciosos de nossa verdade, de nossa virtude e de nossa capacidade de bem escolher aquilo que o outro deve fazer... Eis que somos o anjo maldito que tem a espada na boca., espada que fere e corta, que mata sem matar. Nós somos o demônio de nós mesmos porque demônio não há e nós nos encarregamos de construir o inferno dos outros... e eles se encarregam do nosso inferno.
Mas voltando aos textos que me desestabilizam. Outro dia reli uma crônica de Caio Fernando Abreu chamada "O rosto atrás do rosto", o que causou uma dor terrível porque ele porta uma verdade que poucos ousam reflitir. Na crônica, ao encontrar um rosto lindo e imóvel, uma personagem inominada passa tentar de todos os modos apreender alguma reação deste. Ele beija a boca do rosto, depois ele morde a boca do rosto até lhe arrancar as carnes, ele bate na face do rosto e bate tão forte que este rosto começa a ficar machucado, cheio de hematomas e feridas. Mas o rosto se mantém impassível. E num movimento de fúria incontrolável, a personagem saca um objeto cortante e fere o rosto de morte, saca um estilete e fura os dois olhos do rosto que o encantava. Mas, então a personagem percebe que esse rosto antes perfeito e enigmático era na verdade uma máscara e, ao arrancá-la, se depara com seu próprio rosto que lhe diz: "Mais nítido do que as ruas sujas, reata o hexagrama das cores do arco-íris suspenso no céu". E dessa forma enigmática termina o texto.
Mas esse texto de Caio me leva diretamente para um de Clarice Lispector que se chama "Persona". Partindo de uma reflexão sobre o filme de mesmo nome, realizado por  Ingmar Bergman, Clarice fala da condição humana e usa o termo persona (mascara em latim) para falar exatamente desse processo doloroso que é, para nós, afivelar uma máscara. A pessoa é... mas ser é doloroso demais e por isso precisamos de nos disfarçar sobre o forçado esquema dos jogos sociais que nos limitam e nos salvam, mas que nos sufocam e matam em alguns momentos.
Todos temos uma máscara que usamos mais ou menos conscientemente e quanto mais cônsil você for da máscara que você usa, menos você será capaz de matar ou machucar, ainda que por palavras, que ferem mais do que a lâmina pontiaguda de um punhal, o teu semelhante que não quer usar a máscara que você veste em seu rosto.
No fundo, não lidamos com a insustentável leveza de ser... nos que mordemos o fruto do conhecimento e da ciência, estamos loucamente alucinados com a verdade. E eis que eu, que não tenho a pretensão de conhecer a verdade, porque ao contrário do que diz o livro sagrado, ela é escravizadora e faz de todos os que pensam tê-la encontrado algozes dos seus semelhantes, ouso desprezar a verdade para que ela venha até mim...
A insustentável leveza de ser é SER simplesmente e ser demanda viver e viver demanda não se preocupar com o outro, ainda que você tenha preocupação, ainda que você deseje o bem-estar de quem você ama. Porque se há salvação, ela é minha e não nossa; toda a vez que me sinto homem capaz de amor de todos os modos possíveis eu me salvo.
Mas o que queremos nós, os homens? O  querem os ciosos homens de bem? Eles desejam que o rosto atrás do rosto esboce uma reação que seja igual a sua. Qual será a surpresa cruel dos guardiães do templo quando descobrirem que, na verdade, o rosto que eles ferem é o seu próprio rosto... porque no fundo todos somos iguais em desgraça, todos somos fadados ao fim último que é o pó e os vermes.
Escrevo isso sob o impacto doloroso da marcha contra os homossexuais no Brasil.
Triste Brasil que, malgrado sua fama de democracia sexual, torna-se gradualmente uma teocracia decrépita e mentecapta... Como, todavia, sou esperançoso e acredito que a verdade é inescrupulosamente cruel, um dia os fariseus modernos compreenderão que só feriram a si... Por hora eles estão ignorantes. Eles seriam capazes de crucificar, fuzilar, torturar e mandar tropas de choque matarem a Cristo mil vezes se preciso fosse, se ele ousasse vir de novo entre nós. Isso porque acredito que Cristo, a quem admiro muito pela coragem de ter vivido como revolucionário e não pela coragem de ter morrido como mártir, se estivesse entre nós, não seria capitalista, burguês, homofóbico e defensor da propriedade privada dos especuladores econômicos. E se fosse poderoso estaria impregnado pelo espírito de solidariedade e de misericórdia pela nossa tão triste condição de homem.
Como você sabe? Diria um guardião do templo cioso de conhecer as palavras de Deus. E eu do alto da minha grande ignorância religiosa diria: "Pois veja em Mateus,  capítulo 21,  versículo 31, meu caro, porque também conheço a Bíblia, apesar de não ser religioso!". E o guardião do templo encontraria essas palavras que não são minhas: " Em verdade vos digo que os publicanos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus".
E você, pretende a verdade pronta de um suposto enviado ou é capaz de pensar na máscara que você usa e, desse modo, se precaver de ferir o rosto atrás do rosto que pode ser o seu ou de quem você ama?

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