quarta-feira, 4 de abril de 2012

Para se ler ao som de Balada do lado escuro...

É proposital o título. Sim, já me defendo dizendo que estou copiando um modo de criação de Caio Fernando Abreu. Enfim, somos sempre tocados e influenciados por textos que nos falam algo e o texto de Abreu sempre comunica algo que me toca fundo!
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Um dia, conversando com um amigo via internet mesmo, ele me mostrou a música "Balada do lado escuro", de Gilberto Gil cantada por Maria Bethânia. E como legenda da música ele afirmou: "Às vezes eu sinto uma dor que parece a dor do mundo. Um dia ouvindo esta música na voz de Bethânia eu brinquei comigo mesmo dizendo que talvez essa dor fosse a dor do lado escuro". Não preciso dizer que esta afirmação me deixou maravilhado pela sua poeticidade (e este querido amigo não é poeta de profissão), mas que me deixou um tanto surpreso porque afinal de contas é doloroso demais carregar a dor do mundo nas costas, quando mal suportamos a nossa condição humana! E eu tentei de todos os modos uma resposta para a afirmação deste amigo, uma resposta para mim obviamente, já que eu sei de minha incapacidade de curar feridas alheias!
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Perdoem-me o cabotinismo, mas a resposta veio exatamente quando eu folheava minha dissertação de mestrado e quando li a dedicatória deste meu trabalho: "Dedico o presente trabalho: à memoria dos "meus mortos", espelhos da minha mortalidade; aos "meus vivos" propulsores do desejo de novas possibilidades".
É engraçado como somos tocados por alguns assuntos, temas... a morte, como aqueles que me conhecem devem saber, é um tema que sempre me fascinou e me fascina, tanto que trabalho com isso desde que entrei na graduação. A primeira vez que eu soube que as pessoas morrem foi uma notícia brusca que minha mãe me deu. Estávamos eu, ela e minha irmã, então com 15 anos,  em torno da mesa e cantávamos cantigas, quando, de repente, minha mãe do nada ou não, porque a memória é essa coisa falha e sem próposito que guarda somente aquilo que lhe convém, afirmou: "Vocês sabem que um dia a mãe vai ficar velha, vai adoecer e vai morrer, não é?" E isso foi o golpe mais dolorosamente cruel que minha mãe e a vida poderiam ter me dado. Desde então, eu vi gradativamente pessoas morrerem perto de mim.
Ainda é com dor mais terrível que me lembro da notícia da morte de meu pai, quando eu era apenas um adolescente de 14 anos... me lembro o modo como corri desabalado pelas ruas do meu bairro para abraçar minha  mãe e dizer-lhe que ela era a única coisa que me restava! E, depois, veio a morte do meu irmão da qual fui testemunha ocular. Ter 20 anos, idade de afirmação da vida, presenciando a morte não é nada fácil.  Ver a cara da morte estampada no rosto do outro, e de um outro que você ama, é a mais dolorosa revelação da nossa mortalidade. E, finalmente, vieram as mortes do meus padrinhos, segundos pais a quem eu tinha um carinho imenso, sobretudo, a minha madrinha que sempre torcia por todos!
A morte pode ser o lado absoluto dessa escuridão que teimamos ignorar! Porque enfrentamos a fome, as intempéries, a destruição e os insucessos, mas a desumanização da morte é algo sem precedentes em nossa cabeça!
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Entretanto, é possível tirar lições lindas da morte. Porque ela é contraparte da vida, sinônimos indissociáveis, como diria Caio Fernando Abreu, de quem eu tanto gosto. E essa lição acho que aprendi.... É preciso tirar o seu quinhão de alegria da aridez da Terra... eu tento tirar o meu, às vezes, com gargalhadas histéricas, mas com a certeza da transitoriedade de tudo!
Porque no fundo, morrer se manifesta em todas as coisas: há um pouco de separação no encontro, mas também há muito de encontro na separação; há muito de tristeza na alegria e muito de alegre na tristeza. E respondendo, para mim mesmo, a afirmação do meu amigo: há sempre um pouco de claridade no lado escuro. Porque já dizia o sabio chinês: há vida na morte, há luz nas sombras, há feminino no masculino, há sempre binaridade em tudo. Isso é Tao, supremo encontro, transitoria separação!
Escrevo isso contaminado pela ressurgimento da vida. Eu que estive morto durante o inverno, ressurjo junto com as folhas verdes da primavera que me trazem um pouco do que meu país me dá...Entendo porque a Páscoa é comemorada nessa data... aqui, a morte é vencida pela vida que teima em ressurgir de todos as cantos, com todas as cores...
Então, nesse momento não canto a balada do lado escuro, mas grito por Oxóssi, cavaleiro de Aruanda, que espalha seu verde por esta terra gelada e vou vivendo na certeza de que eu sou eu, mas também sou outro e de que a minha vida é motivada por meu encantamento e perplexidade pela variedade da vida. Embora tocado pelo terror da minha mortalidade, ainda prefiro o encontro com meus vivos, impulsos para minha continuidade e assim eu aprendo a ser.. e assim eu aprendo a ser...

sexta-feira, 30 de março de 2012

As minhas lições ou um texto desconexo!

Todos sabem das minhas tendências ao melodrama pessoal. Tá, sou, sim, melodramático, diria uma mistura folhetinesca de Janete Clair e Ivani Ribeiro com pitadas de Gilberto Braga, porque ninguém é bobo de não ser minimamente sofisticado, meu bem!
Ultimamente, andei meio fora da casinha... na verdade, eu ainda estou fora da casinha. Não entro nela desde antes de ter saído do Brasil e, quando pensei que estava pra entrar novamente, eis que a porta se fechou, não sei se temporiamente, não sei se para todo sempre, amém! Mas c'est pas grave! Resolvo isso com uma caixa de Rivotril e tudo fica bem! Porque não há nada mais in do que comprar a felicidade na farmácia. Como disse a uma amiga há pouco: remédios nos dão uma felicidade espontaneamente artificial, já que nos dias de hoje, com todos os massacres psicológicos e físicos que os homens teimam em produzir e com as infelicidades que teimamos em procurar, a felicidade forçosamente natural está impossível!
E todo esse papo de felicidade tem sempre a ver com o modo como nos relacionamos com o que nos cerca. Para mim, é dificilimo me relacionar com franceses, por exemplo... Tenho de fazer um esforço sempre grande para compreendê-los e para entender que há certos aspectos culturais que são intocáveis. Esse jeito cartesiano, dicotômico, blasé e "sim, nós somos uma cultura importante!" às vezes me enchem o saco... e os parisienses se superam na capacidade de serem infames em todos os sentidos!
Mas é claro que, malgrado todos os pontos negativos que minha armadura cria para se proteger da alienação colonialista que ataca os brasileiros (e nisso, eu estou armado até os dentes), é sempre possível se encantar com Paris, assim como qualquer outro lugar e tirar, daí, lições para vida! Faço, antes de continuar, um parentêses: a síndrome da alienação colonialista é aquela mania que brasileiro tem de desancar o seu país, dizendo como é horrível a saúde, com a educação é precária, como o transporte coletivo não funciona e se esquece de ver os múltiplos pontos positivos que o Brasil tem. A gente ama achar o terreno do outro mais verde e florido.
Voltando ao encantamento e às lições: é possível tê-las de sobra numa cidade como Paris, que me desculpem os franceses que se acham, mas~não é lá uma cidade-símbolo de modernidade nem de cosmopolitismo.  Não!
A primeira lição que recebi foi conviver com vários estrangeiros e aprender coisas com eles. Não aprendi só coisas boas, certamente. No caso das ruins, eu percebi que há um certa vontade autoritária em alguns países de origem muçulmana... eles querem uma democracia sem discussões, onde todos concordem com eles, uma c muito parecida com a democracia que engendramos na América Latina.
Entretanto, como diz aquela frase clichê com a qual  "a mente que se expande jamais volta ao normal" e isso, para mim, significa: se colocar na posição do Outro pode ser muito valioso, aliás, muito mais valioso do que ir à Sorbonne e explico o porquê penso assim!
Aqui, onde moro, há várias faxineiras que habitam o subúrbio parisiense. Geralmente são de origem africana e levam uma vida muito dura, já que Paris intra-muros é cara e extremamente marginalizadora. Rachma, a femme de ménage do corredor em que moro aqui na MHH é uma malinesa divertida e educada. Ela conversa sempre comigo e, por meio dessas conversas, eu percebi como é difícil para eles, os imigrantes, estarem aqui, mas como também é difícil ter de voltar para seu país de origem,  porque a Europa, para eles, é sinônimo de sobrevivência e de manutenção da família. Ela me disse ter vindo para cá aos 18 anos, recém-casada, deixando no Mali toda a família. Em Paris, onde está desde a década de 90, ela teve cinco filhos, sendo que o último tem menos de 2 anos de idade! O pagamente de aluguel (ou prestação de casa) é algo que incrivelmente caro mesmo no subúrbio, além do valor do transporte que pode passar dos 100 euros se você morar na zona 5 ou 6 da Grande Paris. Enfim, eles ganham euros, mas pagam tudo em euros e isso meio que amortece e relativiza essa ideia doida que algumas pessoas têm de ficarem na Europa, pensando que aqui é o País das Maravilhas!
Há outras lições mais humanas e bonitas! Eu conheci, por exemplo, uma suéca cujos pais são iranianos e que fugiram de lá, quando se instaurou o regime dos aiatolás. A razão para o autoexílio é muito simples: os pais dessa jovem, pertencentes à esquerda iraniana, por não acreditarem no islã e por terem suas ideias consideradas subversivas, obrigaram-se a procurar proteção na Europa que, apesar de todos os pesares, conseguiu um relativismo religioso importante nos últimos séculos. Foi com essa amiga que eu festejei o ano novo persa, uma festa pagã criada por Zoroastro uns 5 séculos antes de Cristo e que, segundo ela, festejava-se pulando fogueiras, representações do fogo da vida.
Essas pequenas lições me fazem pensar em como somos pequenos, quando não nos permitimos  pensar a partir da perspectiva do outro. No fundo, quando retiramos o comportamento blasé dos franceses, quando retiramos véus de uma muçulmana, os panos coloridos de uma malinesa ou a alegria sexual/sensual dos latinos, o que sobra é apenas a sua humanidade que é exatamente igual a minha humanidade que é exatamente igual a sua humanidade e assim sucessivamente! É triste dizer isso, mas não conseguimos enxergar o outro em suas dimensões. Não conseguimos perceber que a riqueza da diversidade de opiniões e posturas em relação à vida é o que faz da vida essa coisa mágica e megalomaníaca que, no fundo, apesar de depressões e infelicidades, vale a pena ser vivida.
Mas o que acontece é que queremos vingança, queremos sangue e queremos faxinar o mundo para que ele se torne um lugar pasteurizado para aqueles que pensam como nós. É desse modo que vemos os judeus, vitimas do passado, tornarem-se carrascos dos palestinos, impedindo-os de exercerem seu direito mais sagrado que é a liberdade. É desse modo que vemos jovens árabes sacando de armas e matando crianças judias em Toulouse para vingar as mortes das crianças palestinas, como se isso fosse resolver os problemas. É desse modo que vemos a polícia "mandando" o cacetete nas costas de estudantes ou qualquer outra pessoa que ouse questionar o status quo. É desse modo que vemos os ditos cristãos mais preocupados com a moral e os bons costumes do que necessariamente com o amor e a misericórdia que também é uma forma de amor. Todos estamos querendo as manifestações Deus, milagres de Deus, castigos de Deus para os pecadores e benesses de Deus para os eleitos sem nos darmos conta de que o maior milagre que a vida ou isso que chamamos de Deus pode nos proporcionar é o milagre nada milagroso de ser, de amar e de respeitar os que nos cercam em suas particularidades!
Talvez, eu esteja iludido, talvez eu seja utópico, mas eu prefiro me manter na utopia de um mundo que eu não precise amar a todos indistintamente, mas também não preciso matar ninguém simbolica ou literalmente para me afirmar... Eu talvez nem seja desse mundo... na verdade, eu prefiro mesmo não ser porque melancólicamente eu vou me dando conta, devagarinho, de que viver, no fundo, é uma grande perda de tempo e um luxo desnecessário e sem precedentes que acaba com minha saúde. Mas eu continuo!  Eu tento continuar enxergando as coisas humanamente bonitas que a vida me dá de presente e teimarei tentando respeitar as particularidades desse humanamente diverso, mesmo quando ele me agredir. Sei que muitas vezes vou fracassar, afinal eu também sou humano e gosto disso!

terça-feira, 6 de março de 2012

A insustentável leveza de ser...

Há dois textos que me impressionam muito, porque mais do que qualquer frase de autoajuda e ou qualquer versículo dos chamados testamentos sagrados eles me desestabilizam... porque, no fundo, sabemos que isso que chamamos de Deus é informe e inapreensível e por mais que tentemos defini-lo e por mais que os guardiães do templo digam, ou melhor, gritem a plenos pulmões o que de nós espera o Deus, nunca saberemos de fato por qual razão megalomaníaca ele nos criou, nós que somos tão mesquinhos, nos que matamos o nosso irmão de morte morrida e, se não ousamos matá-lo de morte matada, é porque somos covardes, é porque temos medo de perder nosso status, é porque não o queremos como mártir porque isso nos denegriria como homens, nós que somos tão ciosos de nossa verdade, de nossa virtude e de nossa capacidade de bem escolher aquilo que o outro deve fazer... Eis que somos o anjo maldito que tem a espada na boca., espada que fere e corta, que mata sem matar. Nós somos o demônio de nós mesmos porque demônio não há e nós nos encarregamos de construir o inferno dos outros... e eles se encarregam do nosso inferno.
Mas voltando aos textos que me desestabilizam. Outro dia reli uma crônica de Caio Fernando Abreu chamada "O rosto atrás do rosto", o que causou uma dor terrível porque ele porta uma verdade que poucos ousam reflitir. Na crônica, ao encontrar um rosto lindo e imóvel, uma personagem inominada passa tentar de todos os modos apreender alguma reação deste. Ele beija a boca do rosto, depois ele morde a boca do rosto até lhe arrancar as carnes, ele bate na face do rosto e bate tão forte que este rosto começa a ficar machucado, cheio de hematomas e feridas. Mas o rosto se mantém impassível. E num movimento de fúria incontrolável, a personagem saca um objeto cortante e fere o rosto de morte, saca um estilete e fura os dois olhos do rosto que o encantava. Mas, então a personagem percebe que esse rosto antes perfeito e enigmático era na verdade uma máscara e, ao arrancá-la, se depara com seu próprio rosto que lhe diz: "Mais nítido do que as ruas sujas, reata o hexagrama das cores do arco-íris suspenso no céu". E dessa forma enigmática termina o texto.
Mas esse texto de Caio me leva diretamente para um de Clarice Lispector que se chama "Persona". Partindo de uma reflexão sobre o filme de mesmo nome, realizado por  Ingmar Bergman, Clarice fala da condição humana e usa o termo persona (mascara em latim) para falar exatamente desse processo doloroso que é, para nós, afivelar uma máscara. A pessoa é... mas ser é doloroso demais e por isso precisamos de nos disfarçar sobre o forçado esquema dos jogos sociais que nos limitam e nos salvam, mas que nos sufocam e matam em alguns momentos.
Todos temos uma máscara que usamos mais ou menos conscientemente e quanto mais cônsil você for da máscara que você usa, menos você será capaz de matar ou machucar, ainda que por palavras, que ferem mais do que a lâmina pontiaguda de um punhal, o teu semelhante que não quer usar a máscara que você veste em seu rosto.
No fundo, não lidamos com a insustentável leveza de ser... nos que mordemos o fruto do conhecimento e da ciência, estamos loucamente alucinados com a verdade. E eis que eu, que não tenho a pretensão de conhecer a verdade, porque ao contrário do que diz o livro sagrado, ela é escravizadora e faz de todos os que pensam tê-la encontrado algozes dos seus semelhantes, ouso desprezar a verdade para que ela venha até mim...
A insustentável leveza de ser é SER simplesmente e ser demanda viver e viver demanda não se preocupar com o outro, ainda que você tenha preocupação, ainda que você deseje o bem-estar de quem você ama. Porque se há salvação, ela é minha e não nossa; toda a vez que me sinto homem capaz de amor de todos os modos possíveis eu me salvo.
Mas o que queremos nós, os homens? O  querem os ciosos homens de bem? Eles desejam que o rosto atrás do rosto esboce uma reação que seja igual a sua. Qual será a surpresa cruel dos guardiães do templo quando descobrirem que, na verdade, o rosto que eles ferem é o seu próprio rosto... porque no fundo todos somos iguais em desgraça, todos somos fadados ao fim último que é o pó e os vermes.
Escrevo isso sob o impacto doloroso da marcha contra os homossexuais no Brasil.
Triste Brasil que, malgrado sua fama de democracia sexual, torna-se gradualmente uma teocracia decrépita e mentecapta... Como, todavia, sou esperançoso e acredito que a verdade é inescrupulosamente cruel, um dia os fariseus modernos compreenderão que só feriram a si... Por hora eles estão ignorantes. Eles seriam capazes de crucificar, fuzilar, torturar e mandar tropas de choque matarem a Cristo mil vezes se preciso fosse, se ele ousasse vir de novo entre nós. Isso porque acredito que Cristo, a quem admiro muito pela coragem de ter vivido como revolucionário e não pela coragem de ter morrido como mártir, se estivesse entre nós, não seria capitalista, burguês, homofóbico e defensor da propriedade privada dos especuladores econômicos. E se fosse poderoso estaria impregnado pelo espírito de solidariedade e de misericórdia pela nossa tão triste condição de homem.
Como você sabe? Diria um guardião do templo cioso de conhecer as palavras de Deus. E eu do alto da minha grande ignorância religiosa diria: "Pois veja em Mateus,  capítulo 21,  versículo 31, meu caro, porque também conheço a Bíblia, apesar de não ser religioso!". E o guardião do templo encontraria essas palavras que não são minhas: " Em verdade vos digo que os publicanos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus".
E você, pretende a verdade pronta de um suposto enviado ou é capaz de pensar na máscara que você usa e, desse modo, se precaver de ferir o rosto atrás do rosto que pode ser o seu ou de quem você ama?

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O sábio, a besta acadêmica...

Não meus caros... isso não é uma discussão sobre o Apocalipse, por mais que os cristãos fundamentalistas de plantão estejam cantando hosanas à espera do Armagendon que irá limpar o planeta de toda a peste pecadora, a saber toda pessoa que seja minimamente engajada em direitos civis, que queira discutir a distribuição de renda, o casamento gay, o direito das minorias, o direito das mulheres abortarem, etc.
Mas há um tipo de clichê de sabedoria que anda me apavorando ultimamente e que pode ser ilustrada nessa histórinha do sábio que anda pelas tribunas de vários palestrantes, religiosos ou não... A história é seguinte (e deixo claro que essa é uma versão que escrevo com minhas palavras):
Um sábio caminhava com seu discípulo, quando notou que havia um escorpião que estava lutando para não afundar na água. E ele, como sábio, resolveu dar uma lição ao seu discipulo. Ele pegou escorpião com as próprias mãos e este o picou e voltou para o mesmo lugar de onde fora retirado. E o sábio o salvou mais uma vez, tendo como retribuição mais uma picada. E isso, segundo a narrativa, se repetiu por duas ou três vezes até que o discípulo interveio e disse ao seu "sábio mestre":
- Mestre, mas por quê o senhor insiste em salvar este animal, se todas as vezes ele vos ataca e volta para o mesmo lugar onde certamente encontrará a morte?
E o sábio:
- Porque a sua natureza é a de me atacar e a minha natureza é de salvá-lo...
Bom, eu nem preciso comentar o ridículo dessa lição, não é? Na verdade, esse tal "sábio" é um bom representante da "sabedoria" que anda espalhada pelo nosso mundo, sobretudo, nas redes sociais. É uma sabedoria pasteurizada, cheia de fórmulas prontas retiradas da Bíblia ou de livros de autoajuda que só ajudam seus autores e que expõem o quanto estamos longe de uma reflexão de verdade. No fundo, eu acho que essas pessoas precisam mesmo é de uma boa vida sexual, porque nada melhor do que um bom orgasmo pra fazer as cabeças funcionarem melhor...
Não há nada mais irritante do que esse pseudointelectualismo que existe atualmente no Brasil. Hoje mesmo um amigo postou uma simples frase opinitiva, dizendo que não concordava com o fato de as redes sociais serem usadas para promoção de autoajuda, religião e mesmo confissão dos fatos da vida. O que se viu foi um festival de discussões "sábias", "filosóficas", sacando filósofos das cartolas e outros aparatos da magia da intelectualidade ocidental. Toda essa discussão termina com certo indívíduo sacando a seguinte afirmação: "Eu não posso ter respeito por um homem que se afirma ateu como Nietzsche" e termina dizendo: "que o filósofo ataca os preceitos da fé".
Como diria uma amiga: "Ai meu Deus!". O cara saca uma discussão sobre a crise de subjetividade e acaba defendendo os preceitos da fé... ah ta: muuuuuiiiiiito coerente!!! Bem se vê que são pessoas que não estão acostumadas a pensar, a ter suas minicertezas questionadas e, claro, na hora do "vamos ver" tiram da manga uma discussãozinha pré-pronta como aquelas massas de lasanha ou pastel, ou aqueles macarrões de massa fresca que compramos para almoçar com a mãe no domingo. É claro: pode sair uma coisa muito boa, mas não devemos esquecer que isso ja estava formatado, pronto, esperando apenas a possibilidade de ir para o forno e sair quentinho pra comentar algum post que se encaixe na discussão de manual.
Não que eu seja um defensor perpétuo da filosofia de Nietzsche, mas não há como não admirar as ideias do cara, mesmo que você não concorde com elas. E, aliás, a discussão nem é sobre o filósofo, mas sim sobre essa tendência de intelecto de quinta categoria que aparece em algumas timelines.
Eis então o dilema da chamada "Elite cultural brasileira", porque essas pessoas se sentem elite, elas estão no teatro, nos jornais, dão aulas na universidade e se sentem o tempo inteiro 100% engajadas. Para elas, postar o "videozinho da moda" é um crime contra a intelectualidade, porque intelectual deve ser sério, deve fazer de sua timeline um lugar para discussões filosóficas do mais alto quilate.
Esse agrupamento de intelectuais é o que denomino a "besta acadêmica"... ela é pior que a besta apocalíptica porque ela pode ter um milhão de cabeças que podem falar desde as mais tolas futilidades da vida até as discussões que poderiam ser consideradas as mais sérias e por trás de sua pretensa inteligência existe um ignorantismo e um autoritarismo sem tamanho, já que essa besta de milhões de faces, não está acostumada a pensar e nem a discutir a partir de suas próprias ideias. No fundo, elas votam na direita conservadora. No fundo elas são defensoras da moral e dos bons costumes burgueses, num mundo em que vemos, todos os dias, as estruturas autoritárias serem questionadas. Elas se sentem senhoras de si. Elas acham que um título como o de Doutorado, por exemplo, é mais do que um simples título que fará com que o indivíduo que o porte receba um melhor salário. Eles realmente acreditam que um "doutor" deve ser um destacado na multidão, deve ser um símbolo de intelectualidade séria, sem o menor rastro de futilidade. Enfim, eles que creem que títulos fazem das pessoas seres superiores. Que ter lido Proust ou Brecht me faz diferente da doméstica ou do gari
Eu tenho medo de pessoas assim. Eu tenho medo ser uma pessoa uma assim. Por isso, estou sempre pronto a achar a Universidade, lugar onde estudo e preparo meu doutorado, um lugar de trabalho somente e não o lugar onde entregarei minha vida, amém.... Porque minha vida é muito mais do que ter defendido uma tese ou ter conseguido uma vaga numa universidade. O que me conforta é saber que a grande maioria das pessoas que estão entre meus amigos, virtuais ou reais, pensam igual a mim.
Só para terminar esse desabafo eu coloco uma frase de Caetano: "Se essa geração entende de política como entende de estética [de literatura, de filosofia, de música, etc.] estamos bem! Essa é a geração que quer tomar o poder?"
Eu continuarei postando não só vídeos da moda, mas também entrarei em discussões sobre desapropriações ilegais, falta de respeito com as minorias ou intolerância... porque eu sou assim... eu tenho a boca grande e esse é meu mal.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Um grito por Elis Regina...

Andei meio sem vontade e inspiração pra escrever... pra falar a verdade, não sei se quero mais contar histórinhas brasileiras em Paris, mas isso pode ser temporário. Como isso aqui é um blog pessoal e serve como uma forma de expressão, eu resolvi, hoje, falar de referências culturais fortes para mim.
Em dezembro, fez 10 anos de morte de Cássia Eller. Para mim, Cássia Eller foi essencial por várias razões, mas eu destaco uma: ela era um roqueira no sentido estrito da palavra. Posso destacar outra se vocês quiserem: sem nunca ter afirmado ou levantado bandeiras, Cássia e sua companheira fizeram mais pela construção de um respeito pela identidade homossexual do que muitos movimentos gays oficiais (o que não quer dizer que eu não os respeite e aprove, mas paradas/carnavais não resolvem muita coisa).
Como eu não estou aqui para discutir gênero, pelo menos não neste post, eu pensei em Cássia mais como roqueira e como representante legítima dos anos do veneno, a década da quebra de todas as utopias que ainda restavam no mundo. Os anos 80 foram essa coisa amarga demais, porque no seu bojo, tivemos perdas irreparáveis: a emergência do fundamentalismo cristão brasileiro data dessa década; a Aids que veio como uma praga divina (para os ignorantes, off course) e destruiu o último reduto de liberdade que tínhamos... o nosso prazer, também é dessa época. Como o boy, personagem a quem a mulher do conto "Dama da noite", de Caio Fernando Abreu, se dirige, eu nasci com camisinha em punho... e se eu não quiser usá-la corro risco de vida... amor virou risco de vida... Enfim, se fossêmos culpar Deus, diríamos que ele é pequeno-burguês, moralista e de extrema direita... em poucas palavras... um grande fascista que nos tirou tudo... Mas me perco em digressões!
Eu quero falar que Cassia Eller foi a melhor coisa que aconteceu no fim da década de 80 e os anos 90, isso porque Cassia cantou tudo: forró, samba, dando sempre a sua pitada de roqueira ovelhanegradafamília. Ela colocou no cenário musical grandes compositores como Nando Reis, na época, integrante da banda Titãs e ratificou outros talentos, como o de Cazuza, compositor a quem ela admirava abertamente, tanto que lançou um disco só com canções do poeta que morreu pedindo piedade para os caretas e covardes que nos cercam cotidianamente. Mas falar de Cássia Eller me fez pensar em outra estrela também essencial para a música brasileira.
Dia 19 de janeiro de 1982, o Brasil estava em comoção porque perdia aquela que é até hoje considerada sua maior cantora. Depois de conquistar o país cantando "Arrastão", no primeiro festival nacional da canção, veiculado pela extinta TV Excelsior, isso em 1965, quando ainda tínhamos esperança de que a inteligência brasileira não estava ainda no seu melhor, Elis se tornou, em pouco tempo, uma estrela do quilate de uma Billie Holiday, de uma Aretha Franklin, de uma Nina Simone... Elis era genial... ela era uma voz... uma mulher pequena e intensa, de uma sensualidade/sexualidade explosiva, o que ficava muito claro nas suas interpretações e que interpretações!... Elis, como Bethânia ou Gal, dava às músicas que ela cantava uma versão definitiva. Me emociono sempre com "Cais", "Conversando no bar" ou "Corsário", musicas de gente que já nasceu com dor de cotovelo e eu nasci, não nego, sou degraçadamente melodramático, sou folhetinesco e as músicas de Elis são minha trilha sonora, sobretudo, quando a camera faz um close no meu rosto... e nem é um rosto de galã... é um rosto qualquer, desses que você pode nem prestar a atenção na multidão... um ser humano normal.
O meu caso de amor por Elis Regina Carvalho Costa começou quando eu ainda era pequeno e minha mãe cantava "Romaria" pra mim - sim, eu tenho uma mãe inteligentíssima e que me deu amor pela música - ela cantava enquanto lavava roupas de umas 10 casas para nos sustentar, isso numa época que ter um tanquinho Colormaq era um luxo sem precedentes. Minha mãe lavava roupa na mão, fumando cigarros intermináveis eu ficava ali perto dela, às vezes, jogando água na espuma de sabão de pedra para que a espuma virasse uma nata e eu a retirasse da água... brincadeiras que as crianças não terão mais e que muitas crianças da minha geração ja não tinham, porque enfim o mundo evoluiu (mesmo?)...
O fato é que Elis entrou na minha vida para sempre, mas essa admiração por sua música só foi se definindo com o tempo. Eu me lembro, e sei precisar a data de quando foi a segunda vez que ouvi Elis. Em 1985, a Som livre, última gravadora de Elis, lançou o LP "Elis, luz das estrelas". Era um LP lindo com fundo preto e uma mulher cantando num gesto magnífico, braços abertos e cabeça erguida... eu tive que aprender a erguer a cabeça como Elis, não para cantar, mas sim pra viver... Entre as músicas presentes no álbum se destacavam "Corsário" e "Para Lennon e McCartney"... me lembro de Elis gritando/cantando na propaganda "Por que você não verá meu lado ocidental" ou " Mesmo que mande garrafas, mensagens por todo mar"... enfim, me perco em divagações da minha infância estranha. Mas o fato é que Elis sumiu um tempo, sufocada pelos sertanejos, axés, coisas de adolescência, mas voltou forte quando ouvi "Gracias a la vida" ou "Me deixas louca" e tantas outras que não poderia citar. Quando vim pra cá, não pude deixar de pensar na música "No dia eu que vim me embora", triste e dolorosamente dilacerante pra mim, que deixava meu mundo lá do outro lado pra virar bicho aculturado pela eminente cultura francesa, européia....
Ao me despedir dos amigos, não pude deixar de pensar em "Nada será como antes", sobretudo no aeroporto, quando abracei Ana Paula, minha amiga/irmã/confidente, que me encorajou não derramando uma lágrima e quando toquei, pela grade, a mão de Harlen Félix... meu amigo/irmão/confidente, que me disse: "Te amo incodicionalmente, amigo". Isso vai ecoar na minha cabeça para todo sempre...  Enfim, Elis vive de certo modo comigo... assim como meus amigos. Elis é minha amiga porque ela testemunha todos os meus fracassos e sucessos...
Bem, como vocês devem ter percebido, mais do que carinha faz piada da própria desgraça, esse sou eu... melancolicamente eu e não me furto de viver a minha melancolia nesse mundo tão cheio de positividade artificial e de falta de inteligência no sentido mais estrito da palavra. E ouvir Elis me dizendo "que o sinal está fechado para nós que somos jovens" me faz pensar que abriram o sinal e a gente se perdeu pelas esquinas sem rumo e sem objetivo... acho que envelheço nessa cidade, não? 
Mas voltando ao assunto, dois dias depois dos 30 anos de sua morte e vendo o vídeo da música "Corsário" pela enésima vez, eu entendo porque Elis Regina continua sendo essencial.... ela define minha melancolia como ninguém e talvez ela defina a melanciolia brasileira... essa coisa meio histérica, meio triste, meio tragicômica que portamos dentro de nós... esse sentimento de alegria que escandaliza os estrangeiros, mas que vem sempre ao lado de uma dor sem limites... tiranias da vida, tiranias de nós mesmos que não sabemos ser outra coisa... Eu, eu não sei ser outra coisa.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Uma vida melhor: uma tentativa desgraçadamente infeliz de fazer filme com finais felizes

Quem nunca assistiu a um bom filme europeu? Se bem que isso é só uma expressão mesmo, porque, no fundo, bons filmes não tem nacionalidades.
Apesar de saber que  vai ter gente que vai ler isso e me achar um imbecil de marca maior, para mim Cidade de Deus, um filme brasileiro,do cineasta Fernando Meireles é muito mais filme esteticamente falando do que Quem quer ser um milionário?, de Danny Boyle, diretor inglês,  isso porque Meireles é genial, mostra a crueza da realidade brasileira e faz isso com tomadas genias e montagens sensacionais (o flashback que se inicia com um giro de 360º em torno de Buscapé e só terminado quando ele aparece criança é um exemplo), enquanto Danny Boyle fez um filme que mostra a miséria indiana e que tem como solução básica  um happy end como direito a uma dancinha à la Caminho das Índias. Não, não tenho nada contra finais felizes, até sou bem melodramático e adoro pensar que tudo vai dar certo no final. Outro detalhe: gostei e muito do filme de Boyle, mas Meireles como o filme que citei fez história no cinema mundial e influenciou até mesmo Doyle, inclusive na escolha da temática de seu filme.
Tudo bem! Não quero bancar o chatinho e ficar comparando filmes antigos. O que eu quero mesmo é discutir como o cinema europeu, especialmente o francês, que não tem uma tradição de finais felizes, rendeu-se ultimamente ao filão autoajuda que reina em todos os recantos do mundo...
 Eu sei que tem gente que quando ouve a expressão "filme europeu", ja pensa: "Hum, que desgracinha, mais um filme chato". Mas eu, como um bom amante de cinema, embora não seja um cinéfilo como meu amigo Gustavo, adoro filmes europeus. O meu cineasta predileto, depois de muita resistência e um pouco de insistência de uma amiga, é sem sombra de dúvida Pedro Almodovár, com todas as suas cores, sua histeria e o jeito todo especial de tratar problemas existenciais. 
Entretanto, esse post não é para discutir Almodovár, mas como o cinema francês tem feito filmes happy end. Assisti há algumas semanas Intouchables (Intocáveis, 2011), um filme muito bem feito, que conta a história de um homem paraplégico que recomeça a vida a partir da entrada de um cuidador que não tinha a menor experiência em cuidar dos doentes. Os papeis são muito bem defendidos por ambos atores e a história, baseada em fatos reais, é bem emocionante. Além desse filme, há ainda O fabuloso destino de Amélie Poulain (2001), que com suas cores fortes e um jeito meio "ingênuo" de contar a história de Amélie, conseguiu chamar a atenção de uma país tão centrado na produção americana como o Brasil.
Mas nem todas as experiências francesas com filmes de final feliz são bem sucedidas. Talvez porque eles, os franceses, sejam muito blasés para entender dessa coisa meio orgástica que é alegria de viver.
Ontem, fui ver, com um amiga, Une vie meilleure (Uma vida melhor, 2011) e a sensação que eu tive foi de decepção. O filme, super bem criticado e visto como um dos melhores na carreira de Guillaume Canet, não é nem de longe toda essa coisa que as revistas e sites especializados dizem. A fábula é clichê francês dos últimos tempos: o mocinho francês que se apaixona pela mocinha pobre e imigrante, de origem libanesa, e que tem um filho pra cuidar, resolve construir um restaurante sem ter grana e, é claro, se fode e não consegue sequer abrir o negócio. A mocinha ferrada até ultimo fio de cabelo (lembrem: ele tem um filho para cuidar) resolve abandonar namorado e filho e partir para o Canadá, onde, depois de perder dois empregos, vai vender cosméticos de porta em porta e acaba presa por tráfico de drogas. O título do filme, inteligentemente, joga com essa busca da vida melhor que motiva qualquer ser humano saudável e normal. Mas o fato é que a inteligência para por aí.
O filme é bastante fragmentário e as cenas desconexas não nos permitem preencher as lacunas que esses fragmentos deixam em aberto. Além disso, o cineasta tenta utilizar uma linguagem de documentário, com câmera solta e closes no rosto dos atores. Mas vamos combinar, né gente, Fernando Meireles é um só. Bastam que vocês vejam O jardineiro fiel para entenderem o que estou falando. No filme de Cédric Kahn, a câmera solta chega a ser desastrosa. Perguntem: Por que? Eu digo: ela treme o tempo todo, literalmente, o que desfoca a imagem e deixa o espectador tonto... nada estético, não é?
As imagens dos lugares miseráveis de Paris (sim, Paris tem lugares muito miseráveis, mas são muito bem escondidos) são um dado à parte. A meu ver, esse mostrar o miserê parisien remete ao filme de Alejandro Iñarritu, Biutiful (2011), que mostra a personagem de Javier Bardem, um pai em processo de morte, preocupado com o futuro dos filhos, dependentes de uma mãe junkie, às voltas com a miséria e as desgraças das ruas de Barcelona. Todavia, o que é poesia nas mãos de Iñarritu vira um clichezinho de europeu classista que resolve falar de uma pobreza que sequer se conhece por aqui  nas mãos de Kahn.
Para "ataiar", como diria uma personagem mineira de telenovela brasileira, Uma vida melhor fica devendo muito como história e como estética. Sinal de que os bons tempos como o da Trilogia das cores de Kieslowski não existem mais por aqui... pelo menos em alguns títulos recentemente lançados.

sábado, 31 de dezembro de 2011

A última flor do Lácio ou o perigo de se falar português em Paris.

Você já se sentiu, literalmente, na Torre de Babel? Pois se você quer se sentir venha para Paris ou qualquer outra cidade cosmopolita da Europa. Provavelmente, em São Paulo e Rio de Janeiro também deve rolar essa coisa do cosmopolitismo, mas quando vou a SP, por exemplo, frequento a 25 de março, onde só se escuta os comerciantes chineses e coreanos fazendo seus negócios. Aqui não. Em Paris, eu ja devo ter ouvido uma centena de idiomas africanos. É claro que eu não sei diferenciá-los, né? Afinal, mal sei falar francês e  me  muito sinto enganado, pois, quando aqui cheguei, entrei em total desespero ao perceber que não entendia os nomes das estações do RER B. Além disso, ouvir uma mistura de árabe com francês é muito comum e tem também o alemão. Tem também os eslavos. Estranhas as línguas eslavas: ao ouví-las sempre penso que os falantes dessas línguas estão mascando vidro.
Outro dia no RER B - uma experiência antropológica que ainda dividirei com vocês - vi três gerações de mulheres eslavas brigando. Era engraçado demais porque mãe, filha e neta discutiam o tempo todo e muito alto, não se incomodando com os olhares severos dos passageiros. Provavelmente começaram a discussão em Saint Rémy ou qualquer coisa parecida e foram caminho afora discutindo a relação familiar. Para vocês terem uma noção, acompanhei a discussão em 5 estações da Cité Universitaire, onde peguei o trem, até Chatelêt/Les Halles, ponto de mudança de alguns metrôs e RER's e elas não iam parar nunca... Só não pagaram mais mico porque ninguém entendia o que elas falavam.
Falando em entender, é preciso chamar a atenção dos brasileiros para um fato que essas senhoras briguentas não precisaram se preocupar: falar português em Paris pode ser muito perigoso e você pode pagar micos inconfessáveis com essa prática tão normal para nós outros falantes da "última flor do Lácio inculta e bela". Paris está repleta de brasileiros. São turistas e moradores que moram em todos as regiões da cidade. Há também os portugueses. Então, se você estiver em Paris e for falar palavrões e putarias no metrô, cuidado você pode ser flagrado pelo ouvido indiscreto de um falante de nossa querida língua.
Outro dia mesmo, estávamos eu e uma amiga no metro 1 e fizemos alguns comentários não publicáveis em português e uma senhora ao lado perguntou para a filha: "Que língua eles falam?" A menina respondeu: "Português". Automaticamente, quando paramos o papo inconfessável, voltamos a falar francês e ela disse: "Não, eles falam francês!" E a menina: "Eles falam as duas línguas".
Um outro episódio engraçado se deu no metro 5: uma mulher atendeu o telefone e começou a falar alto e em bom português com um cara, provavelmente namorado ou marido. Segue as falas dela:
- Oi, Diego. Ta, Diego, ta tudo bem! Porra, Diego eu ja não falei que eu já resolvi? Diego, assim, me deixa em paz, seu filho de uma puta. Caralho, cara, como você chato, larga do meu pé, já te falei que eu resolvi a porra do negócio, Diego. Caralho, eu vou desligar, vai tomar.... Esta é uma relação baseada na troca afetiva, né gente!
Um outro episódio miquento que só brasileiros sabem fazer com proficiência e cara de pau se deu num outro metrô com uma menina brasileira. Dois caras conversando, enquanto ela de costas ouvia o que eles falavam: "Cara, mas essas francesas são muito sem graça, desbundadas pra caralho!" O outro: "Olha, verdade, mas veja bem essa francesa aí da frente,  gostosa, hein, cara, tem uma bunda boa!". Bom, corta a cena, todo mundo no metrô e 4 estações depois, na descida, a brasileira chega nos rapazes, bem almodovariana e fala: "Obrigado pelo elogio, rapazes!" Nem é preciso ter muita imaginação para ver a cara dos rapazes depois da revelaçaõ, né?
E tem o episódio daquela da menina que estava no Carrefour e viu uma senhora que a encarava. Nervosa ela perguntou para o amigo: "Por que essa mulher está me encarando desse jeito? E ainda fica rindo!" E a mulher responde: "Porque você fala a mesma língua que eu". Claro que rola aquele momento vergonha e todo mundo quer se enterrar e nunca mais sair. Mas isso é pas grave, gente. Todo mundo, no final, acaba ficando espertinho e falando baixinho, como só os franceses podem nos ensinar...
Eu mesmo já foi vítima da sanha assassina de se falar português. Eu e uma amiga fomos comer em Republique e, como todos os que me conhecem sabem que falo palavrão. Rolou todo o tipo de baixaria no papo. Na mesa do lado, presumo que todos fossem franceses, começaram a sair uns "a mesa do lado". Momento vergonha própria, né, porque vergonha alheia é pouco!...

PS: Bom, aproveito a deixa pra desejar a todos um Feliz Ano Novo, com muitas felicidades...